
Brilhante!
Miguel Granja a explicar o politicamente correcto e o fim da liberdade de opinião em Portugal.
“No início do milénio, eu, já ateu, estava em Filosofia numa universidade católica e passava a vida a discutir com colegas crentes e professores jesuítas acerca da existência de Deus. Munido do “Gott ist tot” de Nietzsche e do “Deus é a solidão dos homens” de Sartre, estava sempre pronto para estrebuchar argumentos contra Tomás de Aquino, Pascal, Schleiermacher, Karl Barth ou Hans Küng.
Qualquer mesinha de estudo na biblioteca onde reinassem silêncios e crucifixos se transformava imediatamente numa ágora ateniense onde explodiam silogismos, alegações, recursos e objecções, até que “A Dona Conceição da Biblioteca”, nome e patronímico ternos e eternos, nos viesse pôr na ordem ou na rua. Muitas questões ficaram por responder (hábito que se demora desde, vá, Platão) mas nenhum insulto ficou por remeter. Simplesmente porque, naquele tempo, o insulto não existia. Insulto e debate eram eventos mutuamente exclusivos. Trazer um insulto para um debate era tão sacrílego como entrar um porco no Santo dos Santos.
No entanto, algo mudo, entretanto. O ambiente mudou. Está hoje menos, muito menos, livre para o debate de ideias. No ano 2000 podia discutir-se apaixonada e livremente a existência de Deus numa universidade católica sem se ser ameaçado com as labaredas e as forquilhas do inferno. Em 2018 não se pode discutir sequer a privatização do SNS sem se ser chamado de fascista ou o problema da imigração sem se ser acusado de xenófobo. Hoje o porco chafurda e ronca no Santo dos Santos como numa pocilga. Tenho-me perguntado o que aconteceu no caminho para cá. Hoje sei: aconteceu o 10 de Outubro de 1999.
Se eu tivesse que escolher a data mais negra da história da democracia portuguesa, seria 10 de Outubro de 1999. Desde esse dia, o espaço público, que já foi mais livre, mais leve, mais divertido, tem vindo a tornar-se cada vez mais intolerante, mais policiado, mais claustrofóbico. Onde antes se tolerava discutir a morte de Deus, hoje não se tolera sequer abordar os padecimentos da Segurança Social. O politicamente correcto é apenas o nome politicamente correcto que chamamos, desde então, a esta claustrofobia anti-democrática.
O que aconteceu à nossa democracia foi o 10 de Outubro de 1999: o dia em que o Bloco de Esquerda recolheu 132 mil votos nas legislativas e Francisco Louçã e Luís Fazenda foram eleitos deputados à Assembleia da República. Pela primeira vez, a “doença infantil do comunismo” passou a ter representação parlamentar. O resto é metástase. A partir desse dia começou a feroz colonização das universidades, das escolas, das redacções de imprensa, de todas as “fábricas da palavra” (porque as outras fábricas, as “fábricas das mãos”, já estão há muito tomadas pelo PCP). A 10 de Outubro de 1999, com a eleição do Bloco, teve início em Portugal o sistemático sequestro das palavras. O que sentimos hoje é o vazio crescente deixado pelas palavras já sequestradas e cujos sussurros familiares de vez em quando ainda somos capazes de escutar.
O triunfo dos porcos no Santo dos Santos é a instituição de uma novilíngua, vala comum de velhas palavras executadas. Parafraseando o outro, se querem uma visão do futuro, imaginem uma bota a pisar uma palavra — para sempre. 1984. E porque até nisto estamos sempre crónica e pontualmente atrasados, só chegámos a 1984 em 1999. 10 de Outubro de 1999: o anti-25 de Abril de 1974. Ainda tereis saudades, como eu, do 9 de Outubro de 1999.”